Resumo de sua biografia

Dora Mariana Ribeiro Ferreira da Silva nasceu em Conchas/SP, em 01/07/1918, e faleceu em São Paulo em 06/04/2006, com 87 anos. A poeta recebeu por três vezes o prêmio Jabuti e foi contemplada pela Academia Brasileira de Letras com o Prêmio Machado de Assis pelo livro Poesia Reunida (1999).

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Tanta tristeza nas águas...


Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.

Em que reino vive agora
a princesa que vivia
na infância sob amoreiras
acesas à luz do dia?

Onde o sol, onde o tumulto
de pombas no céu ardente
onde o frio da tarde morta
entre escombros do poente?

Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.

Onde a lua marinheira
no alto céu que surgia __
negro mar cheio de espantos
mordido de ventanias?

Onde o Rei do reino ausente
onde a fada que fazia
do mundo um sono profundo
e do sonho a luz do dia?

Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Noturno I

Estrelas pendem da noite,
videira delirante.
Coroada de espelhos e ametistas
transmutas a carne em nudez

guardiã, sacerdotisa,

nos vales da distância
rumina em silêncio
teu rebanho tranquilo.

Noturno II

Nossos olhos nos pertencem __
não o dia.
Amor não nos pertence
nem a morte.
Apenas pousam na pérola mais fina.
Desce o luar
no flanco de rios precipitados
folhas se alongam
caules estremecem.

A noite já desfere
seu punhal de trevas.

Noturno III

Pétala da noite
pálpebra fixa dos que olham para sempre a morte
nave perdida e sem memória
pérola marinha
arremessada às águas.

Rosa intranquila
pólen do amor sem pouso
mênade errante, os longos cabelos torturados,
tu, sublevada, que me prendeste em teu anel de insônias
e que desfias no espaço
o claro colar das águas:
porque acordas no meu peito a sede dos desertos
e me aprisionas, pássaro, em teu arco de prata?

Ânfora

Das amargas amêndoas dos teus olhos
nascem rios de roxa nostalgia
morrem nas águas nenúfares da lua
em urdidura de estrelas sem destino
ai que teces fiandeira tenebrosa
entre céu e abismo
cumes e declives
à flor das águas
no dorso das fogueiras
nas ráfagas do vento
em terra nua
ai que teces fiandeira sob a lua
sob o linho do sono
sob a areia
sob o mármore de mundos esquecidos.

À janela da noite

A lua em seu círculo.
Piam pássaros de sombra.
Meu coração deita raízes, hera escura
na solidão de um muro.
Cintila a constelação de Andrômeda
em sua haste de lágrimas.
Nos grãos do vento
partiram pombos em tumulto e brancura.
Nem a glória
nem o lamento:
vento e planura.

A Lua era um barco...

A lua era um barco
na noite.
Minha fronte coroaste de pequenas flores
e com frutos de púrpura ocultaste meus seios.
Levava-nos Kypris em seu barco extasiado
pelo mar do céu
e já nem sabíamos se, pássaros, voávamos,
ou se flores, mergulhávamos as raízes
na terra.

Manhã I

Esqueço os hieróglifos da alma
há campânulas azuis, ânforas, pássaros
há campos a percorrer.
Esqueço a noite, o sarcófago
beijo os flancos do sol
as colinas, o rio.
Venho de Cnossos, a de perfil marítimo
e enlaço-te na Etrúria
nu e solar
em teu cavalo alado.

Manhã II

No engaste vegetal
pálida ametista.
Tombam do sol pétalas de sombra
setas de luz arisca.
Sob o céu de puras águas
unem-se as bocas na polpa do mesmo fruto.
Terra nos braços, no sangue fascinado,
terra nos ossos claros.
Nós: filhos do vento, coroados de ervas rudes,
ânforas, lutróforas dos que morreram puros.
No espelho do lago semeado de folhas
ondulam os corpos entre hastes de trigo.

Ao sol


Naufragas na noite
em pompas de luz e imensidade
todo germe palpita na semente
e da nova manhã ressurges
clara divindade
nua a carnação sob o manto escarlate.

Anima

Minha Amada
nenhum sono revelou-me
tua forma pura
não houve silêncio bastante
na noite
e em mim
que te acolhesse
adivinhada
perfeita como um presságio
o passo cria raízes
e impede
és o aroma
a rosa evanescente
dos jardins de outrora

cega
li teu nome em meu sangue
e as estrelas confirmaram

no escuro divinatório
reconheço
o perfil da tua origem

Fantástica

De teia tão fina teci teu rosto
no tear dos dias
na sala vazia das noites extenuadas
em triste vigília
pai
urdi tua fronte
tuas mãos
tua melancolia
nascida igual na minha boca
pai
filho imaginário do meu pensamento
se te amo tanto
entre fronteiras cegas
é para compor contigo
o vago poema
que deixaste incompleto

Nostálgica nº1

Lua de ausência
mar de amargura
só no abandono
da noite escura 
 
sal e naufrágio
morte na areia
melancolia
triste sereia
 
vaga e apagada
casa que oscila
ai na minha alma
voz intranquila
 
teia da espera
pranto de espumas
longe a afogada
num mar de brumas
 
rosto de sombra
voz incorpórea
lábio cerrado
dor e memória

Nostálgica nº2

Esse tempo que passa como um vento brando
agitando um ramo desfolhando o aroma
esse tempo de asa entre flor e flor
que leva pólen e insetos embriagados
esse vento quase tristeza nos meus lábios
que vai levando e me deixando a sós
fala da alma que me desabita
do meu corpo ausente quando não estás

Metafísica


Vai tempo onda marinha afogando teus mortos
rola na orla estreita búzios e medusas
põe no ouvido ávido dos vivos
a breve canção do invisível mar
canção de um longe que ressoa
vai tempo fantástica maré
anêmona vibrante
colhe em teu cerco o sorriso do homem
e o pólen dos séculos

Voa pássaro marinho
semente viva entre rochedos
foge para as ilhas
à beira das águas taciturnas

Tempo
mar e marinheiro
barco e viagem
arrasta teus cansados velames e o vento que os impele
vai velho marujo
rumo aos horizontes incompletos


O ausente


Tudo que foi luz
e hoje desmaia em treva
sob a lua errática
e suas confusas pétalas
tudo o que amamos e em desejo tivemos
com sede amarga de posse
em lábios angustiados
renasce deste silêncio de orfandade
e da vida faz cinza
e morte.

O inverno é que não estejas
senão nos olhos áridos da insônia
ai, que não estejas e o sol já não aquece
e o mar não dança entre rochedos
e o pássaro é um triste voo
que adormece.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O vagalume

Inquieta a escuridão.
Acende e apaga a lanterna
sem cessar.
Busca a perfeição.

A manhã o ilumina
insatisfeito
e opaco.

A esperança

Folha caminhando
verde orvalhado que se distancia.
É a espera do que não se sabe
e reza. A que Deus?
Nosso olhar se acerca perguntando
de silêncio é feita.
E juntas caminhamos
num percurso vago.

A formiga

Na rotina do dia
transporta folhas
migalhas.
Vai só
ou em exércitos de cego labor.
Se muda de direção
da utilidade se extravia
e com força insensata
arrasta nos campos de batalha
guerreiros mortos.

A joaninha

Pedra preciosa
em cima de uma folha
não sei que mão tocou-te
e coloriu.
Leveza que pousa
quase inexistente
na palma ou na flor.
Besourinho te chamam
mas que dureza dele te aproxima?
Perco-te no instante
para sonhar contigo.
O tempo é uma criança jogando dados.
O reino é da criança.
(Heráclito - epígrafe de Menina Seu Mundo - Poesia Reunida p.111 - Dora Ferreira da Silva)

Via vida

Sou do pouco ambicioso
magro o verso
una a vida
via toda de mosaicos.
Busco a via
do silêncio
imitando a cotovia
(nunca vi, nunca ouvi).
Quero ouvir esse finale
campo santo tão geral
de Conchas a Ravenna
o silêncio sempre mais
dos que ouvem a palavra
sem ruído
sem fronteiras
com as demais.

O silêncio

O silêncio tem uma porta
que se abre
para um silêncio maior:
antecâmara do último,
que anuncia outro depois.

O silenciador

Abre-se a prisão,
hesita o prisioneiro.
A sala de espera se reduz.
O alvo escurece. O escuro busca a luz.
Abre-se o espaço, ventre do esperar.
Abre-se o tempo. E o alvo nos alcança.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Nascimento do poema


É preciso que venha de longe
do vento mais antigo
ou da morte
é preciso que venha impreciso
inesperado como a rosa
ou como o riso
o poema inecessário.

É preciso que ferido de amor
entre pombos
ou nas mansas colinas
que o ódio afaga
ele venha
sob o látego da insônia
morto e preservado.

E então desperta
para o rito da forma
lúcida
tranquila:
senhor do duplo reino
coroado
de sóis e luas.

Flores


As flores do inverno vão se abrindo
em arbustos sem folhas
candelabros de ramos
que se aquecem
na débil luz que emana das corolas.
Falam em surdina, veladas de aroma,
as pétalas, bailarinas do pudor,
confidenciando nos vórtices secretos
dentro da pálpebra do dia sem calor.

Viver




Silêncio
__viola em repouso__
Vivo a teu lado.

Escrevem insetos nas folhas
Olham-me as flores.

Canta uma voz que se esconde
(onde? de onde?)
Vira-se a página
E no céu
Sorrisos passam.
(SILVA, 1999)

Orfeu




I
Canto canções
Para os que morreram
Doces animais acorrem
Para ouvir o canto
E me acolhem
Nos quietos corações:
Pomba, pavão,
Pássaros de beira d’água,
Cervos, esquilos
E a Árvore.
Vem a pantera, agora mansa.
Sob as folhas vivas
Sustenho na mão a lira.
É isso a solidão.

II
Colheu a flor __o Poema __
Arrancou-o à resina da vida
E entre as páginas prendeu-o
Debatendo-se, vivo.
A fonte alimentou-o nas águas.
E a mão o feriu
Para dispersá-lo
E, nele, o coração.

III
Sob a Árvore chamas,
Sem que os lábios falem.
Eis o cervo, a pantera,
A áspide, o pássaro,
O boi ruminando sombra:
Ramos dispersos,
Bebem o orvalho da música,
Reunidos nas cordas
De teu claro
Coração.
(SILVA, 1999)